O texto abaixo embora longo, vale a pena ser lido com atenção.
O Vale do Amanhecer e as Configurações de um Mito
em Códigos Verbais,Cinéticos, Visuais e Sonoros.
Mrs.Carmen Luisa Chaves Cavalcante
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil
Sobre o Vale do Amanhecer
A comunidade religiosa do
Vale do Amanhecer tem um forte apelo milenarista e é marcada por um intenso hibridismo religioso. Fundada em 1968 e localizada a 6 km de Planaltina, cidade satélite de Brasília, teve sua criação diretamente associada à vida da sergipana e ex-caminhoneira Neiva Chaves Zelaya, mais conhecida como Tia Neiva, e às supostas aparições de uma entidade indígena chamada Pai Seta Branca, seu mentor espiritual.
Em 1957 Tia Neiva, de acordo com os adeptos, passou a ver e ouvir espíritos. Um cacique enfeitado com plumas brancas e falando espanhol foi o primeiro a se manifestar. Identificando-se como Pai Seta Branca, essa entidade estaria a serviço de uma grande missão aqui na Terra. Uma vez que não mais poderia encarnar, teria escolhido Tia Neiva como sua substituta na criação de uma doutrina que, através da prática da cura espiritual, iria preparar a humanidade para a chegada do terceiro milênio. Época em que não existiriam dor e sofrimento.
Pai Seta Branca e o mito fundante da comunidade
Pai Seta Branca é uma presença constante na história do Vale do Amanhecer. Nas narrativas míticas dos fiéis, é considerado um “espírito de luz”, “um espírito que se alimenta das energias do ‘céu’”. Possui atributos divinos e é identificado como “algo único e ímpar, criado por Deus, o qual um dia na eternidade iniciou uma trajetória, tornou-se ‘impuro’ e, fazendo um retorno elíptico, ‘voltou’ para Deus” (Álvares, 1991b: 7).
Sobre os modos como se deram a suposta remissão de seus atos impuros e conseqüente consagração nos planos espirituais superiores, ou Astral Superior, pouco se sabe. O importante para os adeptos é que, após tornar-se um espírito iluminado, Pai Seta Branca teria vindo a Terra repetidas vezes, sempre na condição de executar sentenças divinas, como, por exemplo, a de auxiliar Tia Neiva na criação da doutrina do Vale do Amanhecer.
Espécie de herói civilizador da comunidade, Pai Seta Branca é certamente a entidade de mais prestígio entre os fiéis. A narrativa referente a sua trajetória cármica assume características de um mito. Definido por Eliade (1989: 12) como uma fala, o relato de uma história sagrada, de um acontecimento fundante que teve lugar num tempo primordial, no fabuloso tempo dos “começos”, para Mielietinski (1987: 200-206), o mito está normalmente associado à figura do herói, refere-se à criação de alguma coisa: o primeiro fogo, a primeira planta, os primeiros procedimentos medicinais e de caça, assim como as primeiras atitudes moralmente positivas e negativas.
De fato, entre os fiéis, a figura de Pai Seta Branca encontra-se diretamente atrelada à gênese do ser humano, passando pela criação de cidades, civilizações, entre outros, e culminado com a fundação do Vale do Amanhecer. Sua história, embora apresente algumas variações, pode ser dividida, basicamente, em cinco momentos, correspondentes ao número das supostas encarnações que ele teria tido na Terra. São elas: o equituman, o tumuchi, o jaguar, o Assis e o cacique, respectivamente.
Das encarnações de Pai Seta Branca: narrativas que compõem o mito.
Contam os adeptos que todos os seres humanos descendem dos habitantes de um planeta chamado Capela, cujos moradores seriam bastante desenvolvidos nos planos físico, científico e espiritual. A estes seres teria cabido a missão de colonizar a Terra. No entanto, como suas constituições físicas não lhes permitiam a adaptação ao novo planeta, tiveram que passar por uma espécie de mutação. Transformaram-se, assim, nos equitumans, seres semidivinos que, além de andróginos, mediam de três a quatro metros de altura (Cavalcante, 2000: 50).
De acordo com o adepto Álvares (1991b: 7), os equitumans chegaram a Terra em naves, estabelecendo-se na região andina, na América Latina. Viveram durante 2000 anos, até que desapareceram repentinamente, num cataclismo que atingiu o planeta. Tal acontecimento teria sido provocado pela aproximação de um corpo extraterreno, semelhante a uma nave espacial. Mortos em decorrência dos efeitos provocados por esse objeto do espaço, os equitumans teriam sido sepultados na área do atual lago Titicaca, situado entre o Peru e a Bolívia. Segundo Álvares, na linguagem do Vale do Amanhecer, essa nave ficou conhecida como Estrela Candente, e o fenômeno da formação do lago configurou-se como resultante de “uma lágrima da Estrela Candente”. O referido acontecimento teria ocorrido sob a direção de Pai Seta Branca, então comandante da nave (Álvares, 1991b: 8).
Após o desaparecimento do equitumans, Pai Seta Branca, na versão dos fiéis, teria organizado os últimos remanescentes desta civilização em grupos de sete para efetuarem uma nova “colonização” do planeta Terra. Recebendo uma outra denominação, passaram a ser chamados de orixás. Dos grupos integrados pelos orixás, no entanto, formar-se-iam inúmeros clãs de missionários conhecidos pelo nome de tumuchis (Cavalcante: 2000: 51).
De acordo com Álvares (1991b: 8), os tumuchis seriam hábeis artesãos e cientistas, avessos à guerra. Conheciam e manipulavam o potencial energético dos corpos planetários; moviam-se na superfície do planeta com naves próprias, guiados por mapas e maquetas do globo terrestre. Liderados por Pai Seta Branca, encarnado como um chefe tumuchi, teriam construído monumentos em vários pontos do planeta, podendo até hoje ser conhecidas as suas ruínas. Tal é o caso da cidade de Machu-Pichu, a famosa cidade sagrada dos incas, no Peru. Outros monumentos seriam as pirâmides do Egito e as cabeças gigantes da Ilha de Páscoa.
Passados cinco mil anos, na versão de Álvares (1991b: 9), teriam vindo os jaguares, cujo símbolo universal era a figura estilizada dos felinos. Em uma outra versão, sustentada pelos adeptos, conta-se que os jaguares teriam surgido entre os próprios tumuchis que habitavam a região andina. E que novamente liderados por Pai Seta Branca, chamavam-no de o “Grande Jaguar”, devido a sua força e sagacidade de guerreiro, além de sua eficiência em lidar com processos químicos e físicos (Cavalcante, 2000: 51).
De acordo com Álvares (1991b: 10), diversas civilizações continuaram a surgir e a desaparecer, sempre em ciclos de 2000 anos. Com o nascimento de Jesus, porém, e a conseqüente instauração do “Sistema Crístico”, Pai Seta Branca despiu-se de sua roupagem de guerreiro e encarnou novamente na Terra, desta vez como um santo da Igreja Católica. Divulgando única e exclusivamente o amor e o livre arbítrio entre os habitantes do planeta, teria vivido na Itália como São Francisco de Assis.
No século XVI, segundo Álvares (1991b: 10-11), Pai Seta Branca estaria encarnado no planeta Terra como um cacique mestiço de um povo também andino, da região fronteiriça entre Brasil e Bolívia. Nessa época, ele seria também conhecido como Cacique da Lança Branca, devido à alvura da ponta de sua lança, a qual passou a caracterizá-lo e o tornou uma personalidade lendária. Pai Seta Branca lutava, sobretudo, pela paz e salvação dos povos, e trazia no olhar a sabedoria dos seres iluminados pelo amor divino. Fato que, nessa época, o teria feito persuadir os espanhóis de desistirem do extermínio às últimas aldeias incas. E fato que, mais tarde, de acordo com os adeptos, fez com que ele escolhesse Tia Neiva como sua substituta, convencendo-a a criar o Vale do Amanhecer.
As codificações de Pai Seta Branca
Diante de tais narrativas fica explícito que as referências aos povos pré-colombianos não são fiéis ao que costumam dizer os historiadores, arqueólogos e antropólogos. Tal é o caso da criação das pirâmides egípcia, dos monumentos da Ilha de Páscoa e da cidade de Machu-Pichu. De fato, entre os adeptos do Vale do Amanhecer, os incas, maias e astecas não são exatamente aqueles conhecidos pelos pesquisadores. No que diz respeito a sua relação com Pai Seta Branca, essas menções misturam-se a outros elementos, como a nave extraterrena Estrela Candente e apresentam-se, por fim, modificadas, diferentes do que eram anteriormente.
A esse mecanismo, que opera pela recodificação de uma tradição anterior em algo inesperado e novo, pode-se chamar, segundo a semiótica russa, de modelização. Tipo de tradução ou processamento de códigos que se define enquanto passagem, travessia, movimento, portanto; e que se apresenta com freqüência no caso do objeto estudado. Nesse sentido, se existe entre os adeptos a crença em um Pai Seta Branca pré-colombiano, é fato que referências a esses povos estarão presentes, no objeto mencionado, de uma forma diferenciada, re-significada, portanto.
A codificação verbal, seja ela oral ou escrita, juntamente com a visual é, sem dúvida, a codificação de maior força de um Pai Seta Branca pré-colombiano. Ao que parece, os demais códigos, tanto os cinéticos como os sonoros, mesmo estando em permanente diálogo com os primeiros, e sendo de importância fundamental nessa formação, atuam basicamente como secundários. Contudo, para efeito de exposição neste trabalho, em um primeiro momento, deter-se-á sobre o código verbal, para em seguida se analisar o visual e as relações destes com os demais citados.
Embora pudesse ouvir e ver espíritos, teria sido a partir da fala - mítica, porque fundante - que Tia Neiva recebeu de Pai Seta Branca as informações de sua missão na Terra, e foi instruída pelas entidades na construção do Vale do Amanhecer. Pela palavra foram por ela reveladas, a toda comunidade, uma cosmogonia e uma cosmologia próprias à doutrina, e organizados os rituais, bem como a concepção física do local. Dizeres que eram passados aos adeptos por meio de palestras, conversas informais e cartas. Foi também pela palavra, em seus supostos encontros com a clarividente, que Pai Seta Branca teria contado, entre outras histórias, a sua própria. História que fala de incas, mais e astecas, e que assume, pelo mecanismo da recodificação, uma feição e características singulares, marcadas pelo inesperado e pelo status de pura criação.
O fato de os equitumans terem se estabelecido na região dos Andes e serem sepultados na área do atual lago Titicaca, dando origem inclusive à formação do referido lago, como resultante de “uma lágrima da Estrela Candente”, mostra bem esse aspecto de recodificação. O lago Titicaca é, de fato, uma referência importante para alguns povos andinos, seja por seu aspecto sócio-econômico - relativo à moradia e à atividade da pesca -, seja em seu aspecto mítico. Segundo Zuidema (1991: 25), há uma narrativa que conta como Manko Kapác, fundador da dinastia dos reis incas, chegou a Cusco, capital do império inca. Nessa versão, ao invés de ele ter supostamente surgido, juntamente com seus três irmãos, de uma gruta, como relata Favre (1988: 14), o herói civilizador e ancestral mítico do povo mencionado, apareceu pela primeira vez no mundo como nascido do lago Titicaca.
Outra referência de destaque presente no Vale do Amanhecer é à cidade de Machu-Picchu, o famoso santuário Inca. Nas narrativas míticas dos seguidores de Tia Neiva, as ruínas dessa cidade nada mais seriam que provas da existência da civilização tumuchi que, assim como a dos incas, segundo Favre (1988: 75-84), eram constituías por hábeis artesãos, grandes cientistas (astronomia e matemática) e arquitetos.
E se, segundo Favre (1988: 9), os pré-incaicos chavín (1800-400 a.C.) cultuavam o jaguar, no Vale do Amanhecer a figura desse felino não é menos importante. Para os seguidores de Tia Neiva, Pai Seta Branca encarnou na Terra como o “Grande Jaguar”, líder extremamente respeitado por sua coragem, astúcia e conhecimentos científicos. No Vale, o nome jaguar se estende, ainda, a todos os adeptos do sexo masculino, como uma forma de rememorar as façanhas do notável guerreiro e de reconhecê-los, também, como valentes e integrantes, em uma outra vida, do grupo comandado por Pai Seta Branca.
Há um aspecto interessante entre as narrativas míticas dos astecas, que é o da associação entre o jaguar, o sol e o seu oposto, a noite. De acordo com Soustelle (1987: 74), os astecas acreditavam que o mundo fora precedido por quatro outros universos, os “Quatro Sóis”, dentre os quais o primeiro chamava-se “Quarto-jaguar”. Este sol teria desaparecido em um gigantesco massacre, no qual os homens haviam sido devorados por jaguares. Segundo ele, entre o referido povo, o jaguar correspondia a Tezcatlipoca, deus das trevas e do céu noturno pontilhado de estrelas, tal qual a pelagem do felino. Vale dizer ainda que os astecas eram, por excelência, o “povo do sol”. E que, conforme Soustelle (1987: 14), em suas origens, já adoravam o deus solar e tribal Uitzilopochtli.
O Sol era também adorado pelos incas (1200-1572 d.C.), com o nome de Inti. Viracocha, seu oposto complementar, foi também uma divindade importante para o panteão incaico. Estava associado à terra e à água e foi, para os habitantes de Tiahuanaco, segundo Busto (1998: 1), o criador dos homens. De acordo com Ferreira (1995: 54), Viracocha era o deus criador e civilizador do universo. Após terminada sua obra, partiu pelo mar em direção ao Oeste; estando, assim, associado à costa. Já o Sol, deus principal e fonte da vida, teve seu culto difundido e imposto a todas as comunidades conquistadas nos Andes centrais. De acordo com Wachtel (apud Busto, 1998: 1-2), o Sol e Viracocha são deuses complementares por traduzirem as categorias do pensamento inca, além de entrarem em um sistema de correlações e oposições. Ao Sol referem-se o céu, o fogo a serra e o alto; a Viracocha, a terra, a água, a costa, e o baixo. Partes de uma visão global do mundo, formada a partir de uma mesma cosmogonia que comporta indivíduos bem como as dimensões de espaço e tempo.
Tal correspondência entre o Sol e Viracocha parece explícita na representação geralmente atribuída ao segundo, nas ruínas de Tiahuanaco, na área boliviana, próxima ao lago Titicaca. De cabeça retangular, contornada por uma auréola formada por raios e um rosto que parece humano, o deus ocupa o centro da famosa Porta do Sol, importante monumento do mundo andino. Está em posição frontal e segura um par de báculos, com forma de condores de pescoços compridos, mostrando-se adorado por quarenta e oito pequenas criaturas. Nesse caso, o Sol e Viracocha estão unidos não apenas em termos de narrativa, mas também de iconografia, pelos raios que circundam a cabeça do último.
Essa figura guarda uma forte semelhança com imagem do jaguar do Vale do Amanhecer, presente nas insígnias e roupas dos fiéis, bem como nas paredes dos templos. A figura do jaguar do Vale também é apresentada em perspectiva frontal; no entanto, não tem um corpo. Resume-se a uma cabeça, semelhante à do deus Viracocha. Essa cabeça é igualmente circundada por feixes de luz que lembram raios solares, embora sejam coloridos, como os do arco-íris. Tal referência é legitimada inclusive pelo adepto Vladimir Carvalho (06/1995) ao fazer alusão ao jaguar do Vale: “é um jaguar estilizado (...) se você for no altiplano boliviano, na Porta do Sol, você vai encontrar essa cabeça (...)”.
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Detalhe da Porta do Sol / Viracocha |
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Insígnia com cabeça de jaguar |
A associação Viracocha - jaguar é uma criação dos adeptos do Vale do Amanhecer. Idéia que tem como base um relativo conhecimento da iconografia não apenas andina, mas pré-colombiana de um modo geral. De fato, a imagem do jaguar é constantemente representada na arquitetura e nas artes dos povos mencionados. E se Cusco, em seus primórdios, tinha a forma de um puma (felino da família do jaguar) - da qual a fortaleza de Sacsahuan seria a cabeça, enquanto que a confluência dos dois rios que atravessam a cidade formaria a cauda -, como afirma Favre (1988: 67-69), no Museo de La Nacion e no Museo del Oro, ambos em Lima, pode-se encontrar algumas representações, sobretudo de divindades pré-incaicas, com formas híbridas. Na maioria dos casos, verifica-se uma mistura de traços humanos com os de um jaguar, podendo-se verificar, também, a presença de animais alados.
A imagem do Sol, juntamente com a Lua, também é uma constante nas figurações do Vale do Amanhecer. Estão inclusive sobre o templo principal da comunidade, o qual tem sua fachada feita de pedras, lembrando as ruínas de algumas de suas supostas encarnações, como a dos pré-colombianos. Considerados como divindades entre grande parte dos povos mencionados, no Vale, o Sol e a Lua são elevados à categoria de “astros guia” da doutrina. As cores que os representam são sempre o amarelo ou o dourado e o azul ou o prateado, respectivamente. Enquanto a lua é associada ao princípio feminino, entre os adeptos, o sol é visto enquanto centro de energia vital do universo. Simboliza o Oráculo de Ariano - foco irradiador de energia -, também conhecido como Oráculo de Simiromba ou Oráculo de Pai Seta Branca.
Na iconografia do Vale do Amanhecer, Pai Seta Branca, ou Cacique da Lança Branca - se lembrado em sua em sua última encarnação -, é sempre um índio de aparência bonita, jovem e altiva. Veste-se com uma túnica azul, um longo cocar e usa sandálias de couro. Tem olhos puxados, pele morena, e segura com as duas mãos uma flecha/lança de seta (ponta) branca, como indicado em seu próprio nome - relação que evidencia um nítido diálogo entre os códigos verbais e visuais.
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Pai Seta Branca / pintura de Vilela
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O texto Pai Seta Branca pré-colombiano pode ser percebido, ainda, em sua codificação cinética. Segundo os adeptos, a referida entidade incorpora em alguns rituais do Vale do Amanhecer, como é o caso da Bênção de Pai Seta Branca, realizado no primeiro domingo de cada mês e o Oráculo, executado nos dias de quarta, sábado e domingo (dias de trabalho oficial). Há também uma bênção anual, concedida pela entidade no dia 31 de Dezembro, por ocasião da passagem do ano.
Falando em um espanhol bastante rudimentar, o espírito, supostamente incorporado no corpo de um fiel, apresenta, invariavelmente, um semblante, um gestual e um tom de voz tranqüilos. Manifestação que só se dá após o cumprimento de preceitos rigorosos por parte dos adeptos. Os rituais do Vale são extremamente complexos: exigem a presença de um grande número de fiéis, devidamente paramentados e conhecedores de uma organização minuciosa, em que palavras, canto, gestos e movimentos são rigidamente pré-estabelecidos. Rituais, aliás, que se encontram descritos em ricos detalhes em um dos livros editados pela comunidade e que mostram, em sua constituição, a íntima relação entre os códigos verbais, visuais, sonoros e cinéticos.
Fazendo uma nova ligação entre o verbal e o cinético, e estabelecendo a relação destes com o código sonoro, há um canto da comunidade que, segundo Álvares (1991a: 30), atua como um chamado à referida entidade. Pai Seta Branca ao ouvir tal canto, teria facilitado seu deslocamento dos planos espirituais para o plano físico. “Divino Seta Branca/ Tu és a lei de Deus/ Imaculado sejas tu/ Juntinho aos pés de Jesus/ Seta Branca querido por nós/ Tu és o Amor e és a luz/ Que iluminas os tiranos corações/ Erguendo seus filhos a Jesus”.
Mas não é apenas o canto criado pela comunidade que, segundo os adeptos, refere-se a Pai Seta Branca. Há, para seus devotos, uma outra forma de musicar a entidade. Uma nova modelização, entre as tantas já apresentadas, que se verifica a partir da tradução de uma tradição estranha à entidade indígena, em algo inesperado e de fácil leitura. Os adeptos do Vale apropriaram-se de uma música de Caetano Veloso, e dela fizeram uma referência direta à entidade em questão.
Sobre esse assunto, Martins (2001: 2) afirma que Ana, uma mulher criada pela clarividente, fala do tempo em que o artista baiano foi recebido por Tia Neiva no Vale do Amanhecer. Depois de conversar longo tempo com a clarividente, Caetano Veloso teria ido visitar o templo de pedra, ou templo principal. A emoção de ver imagem de Pai Seta Branca, ali, diante de seus olhos e em grandes proporções, teria sido tão grande que ele compôs, em homenagem à entidade, a música “Um índio” [1] .
De fato, como diz a autora,a canção de Caetano põe em evidência o personagem central mais sagrado da doutrina do amanhecer, o cacique inca Pai Seta Branca, cuja imagem está sentada no centro do templo de pedra, impávido, tranqüilo e infalível, preservado em pleno corpo físico, a esperar a entrada da nova era (Martins, 2001: 2).
Desse modo, se na canção de Caetano, um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e pousará no coração do hemisfério sul na América, de acordo com Martins, para os seguidores da doutrina do amanhecer, o índio é o Pai Seta Branca, cacique inca, mentor espiritual da Tia Neiva. A estrela colorida e brilhante é a Estrela Manhante, lugar onde vivem os espíritos mais evoluídos que descem ao Vale do Amanhecer para trabalhar incorporando nos médiuns, com a finalidade de promoverem a cura do espírito [ou seria a Estrela Candente?]. O coração do hemisfério sul da América, o ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico, o centro do mundo, lugar predestinado para se encontrarem os que se preparam para a entrada do terceiro milênio é o próprio Vale do Amanhecer (Martins, 2001: 2).
E mais: se, na música de Caetano, no momento em que o índio descer, o que se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio significa, segundo Martins (2001: 2), referindo-se aos adeptos, que Pai Seta Branca descerá para encerrar o milênio. E que levará, consigo, os seguidores da doutrina do amanhecer para o Astral Superior - lá estaria situado o planeta Capela -, onde não mais terão a necessidade de encarnar e onde não mais perecerão de dor e sofrimento. Assim, com a chegada de Pai Seta Branca a Terra, na visão dos fiéis, será aplicada a lei da evolução dos espíritos e, como profetizaria a música de Caetano, tudo o que antes parecia pertencer ao ocultismo, mostrar-se-á como o óbvio [2] .
Referências bibliográficas
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SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
ZUIDEMA, R. Tom. La civilizacion inca en Cusco. México: Fondo de Cultura Económica, 1991.
* Entrevistas com os adeptos do templo de Brasília nos períodos de 22 a 30 de julho e de 02 a 12 de dezembro de 1995, de 28 a 05 de dezembro de 1996, 17 a 21 de outubro de 1997.
[1] A música de Caetano tem a seguinte letra: “Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante/ de uma estrela que virá numa velocidade estonteante/ e pousará no coração do hemisfério sul na América num claro instante/ Depois de exterminada a última nação indígena/ e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida/ mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias/ virá impávido que nem Muhammad Ali/ virá que eu vi/ apaixonadamente como Peri/ virá que eu vi/ tranqüilo e infalível como Bruce Lee/ virá que eu vi/o axé do afoxé dos filhos de Gandhi, virá./ Um índio preservado em pleno corpo físico/ em todo sólido todo gás e todo líquido/ em átomos palavras alma cor em gesto em cheiro em sombra em luz em som magnífico/ Num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico/ de um objeto sim resplandecente descerá o índio/ e as coisas que eu sei que ele dirá fará não sei dizer assim de um modo explícito/ E aquilo que nesse momento se revelará aos povos/ surpreenderá a todos não por ser exótico/ mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/ quando terá sido óbvio” (Franchetti, Pécora, 1981: 93).
[2] É importante salientar que, para os seguidores da doutrina, a passagem do milênio, embora diga respeito à época atual, não corresponde ao exato momento e data estipulados pelos calendários comuns. O tempo do Vale é um tempo sagrado, tem um ritmo próprio, distinto do profano. Desse modo, a chegada de Pai Seta Branca ainda está por acontecer.