Os cientistas começam a elucidar a ligação evidente entre a barriga e nossos sentimentos
Pesquisando o complexo sistema nervoso que comanda a digestão, os cientistas começam a elucidar a ligação evidente entre a barriga e nossos sentimentos — e a entender o que a medicina oriental já dizia: que é preciso digerir bem o medo, a raiva e a angústia. E que físico e emocional são inseparáveis
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu frio na barriga de medo. Ou teve de sair correndo para o banheiro em uma situação de tensão. Ou perdeu o apetite ao se apaixonar loucamente. Ou sentiu o estômago revirar diante de uma visão repulsiva. Ou engordou por ansiedade. Ninguém nega que a barriga seja um campo fértil para a somatização, o nome genérico que se dá à transformação de emoções negativas em males físicos, com consequências tão graves que chega a ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Mas por que tanto assim?
A resposta pode estar no estudo aprofundado sobre a respeitável rede de neurônios que comanda a função digestiva, e na revelação de que boa parte dos neurotransmissores que circulam pelo corpo, carregando emoções e sensações, tem origem no intestino. Incluindo a serotonina, hormônio do bem-estar.
“Na verdade, essas descobertas só dão base concreta ao que já sabíamos intuitivamente”, diz Marcílio Hubner de Miranda Neto, médico e coordenador do Laboratório de Pesquisas em Neurônios Entéricos da Universidade Estadual de Maringá (PR). “A vida emocional tem relação direta com os hábitos alimentares, e o funcionamento da digestão é diretamente influenciado pelas emoções”.
Cada uma à sua maneira, as medicinas, filosofias e religiões orientais conhecem e explicam essa via de mão dupla há milênios. Os japoneses acreditam que é na barriga que se sente, se pensa, se tomam decisões, se guardam segredos. A importância do hara na cultura japonesa se reflete em uma coleção de expressões populares, envolvendo a barriga, de fazer inveja às nossas, que não são poucas (leia o boxe “A voz das tripas”).
O sistema de chacras, que sustenta até hoje a medicina hindu e está na base da filosofia dos iogues, relaciona intimamente emoções e órgãos. Descritos pela primeira vez nos Vedas, textos hindus datados de 2 mil anos antes da era cristã, os chacras (roda, em sânscrito) são sete redemoinhos de energia que se alinham ao longo da coluna. Cada um tem a incumbência de distribuir o nutriente que vem da respiração – o prana – a um grupo específico de órgãos; e a cada um cabe processar pensamentos e sensações específicos.
A barriga abriga dois chacras importantes: o segundo, swadhisthana, ligado ao aparelho reprodutor, ao impulso sexual e às funções de desintoxicação; e o terceiro, o manipura, que o guru brasileiro Sri Prem Baba define como “a sede do poder de realização e do ego” (leia entrevista a Arthur Veríssimo nas páginas a seguir). LEIA AQUI
Se os chacras não funcionam bem, por algum desequilíbrio, podemos reter sentimentos como medo, raiva e angústia, explica Simone Caldeira, terapeuta corporal que usa o toque para trabalhar a integração craniossacral. Os órgãos podem ter ou não sua função otimizada, dependendo de como a energia flui por eles. “Se o chacra está bloqueado, as funções físicas e emocionais também estão”, diz. Nesse pensamento, físico e emocional “são uma coisa só”.
A medicina tradicional chinesa, que considera a barriga “o centro do homem”, estabelece com precisão como cada emoção negativa altera o funcionamento dos órgãos. “Baço, pâncreas e estômago metabolizam a comida, transformando-a em um substrato sem o qual nada no corpo funciona”, diz o acupunturista Marcius Luz, de São Paulo. “Se a energia dos órgãos se desequilibra, o substrato acumula, gerando obesidade, por exemplo.”
A desarmonia pode vir de excessos alimentares ou emocionais: para os chineses, preocupação excessiva e pensamentos obsessivos esgotam a energia do baço, e a raiva afeta o fígado.
Praticada há 5 mil anos na Índia e cada vez mais conhecida no resto do mundo, a ayurveda tem uma imagem curiosa para a digestão. Segundo essa medicina, a barriga abriga o agni, um fogo metabólico que processa não só comida, mas tudo que experimentamos: emoções, memórias, sensações. Se o agni é ou está fraco, toxinas e emoções se acumulam, gerando dor, suscetibilidade à infecção e obesidade, assim como depressão, fadiga e dificuldade de se manifestar. “Por isso, o abdome é o centro das emoções”, diz Erick Schulz, vice-presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.
“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse uma segunda mente”, diz a monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista, em São Paulo. Nesse ponto, a neurociência tende a concordar. Com 100 milhões de neurônios acomodados do esôfago ao ânus – mais do que o resto do sistema nervoso periférico inteiro –, o aparelho digestivo é, de fato, um segundo cérebro.
O primeiro a dizer isso com todas as letras, em 1996, foi o neurobiólogo norteamericano Michael Gershon, que chefia o departamento de anatomia e biologia celular da Universidade Columbia, em Nova York. Em seu livro The Second Brain, ele explica que, para administrar cada reflexo, espasmo e mudança química necessária à transformação dos alimentos – do esôfago ao estômago, do intestino delgado ao cólon –, o aparelho digestivo precisa avaliar cada situação, decidir-se por uma linha de ação e iniciar movimentos. Daí ser relativamente autônomo em relação ao cérebro, e daí envolver tantos circuitos de neurônios, neurotransmissores e proteínas.
“O intestino realiza funções de alta complexidade. Se ele não pensa de forma autônoma, como o cérebro, é certamente embarcado com grande inteligência”, diz Luiz Guilherme Correa, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP), onde também cursou filosofia, e especializado na medicina tradicional indiana. Essa complexidade deve explicar, acredita Gershon, por que doenças como ansiedade, depressão e síndrome do intestino irritável se manifestam de formas associadas no cérebro e no aparelho digestivo. Grosso modo, nossos pensamentos e emoções são influenciados pelo que acontece nos intestinos, e vice-versa.
E tem mais. “Sabemos, pela neurociência, que 90% da serotonina não é produzida no cérebro, mas no abdome, na região do intestino e do fígado”, diz Ricardo Ghelmam, que coordena o Núcleo de Medicina Antroposófica da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). “Então, se uma pessoa tem depressão, por exemplo, isso não é um problema de cabeça, mas do metabolismo digestivo.” Para a medicina antroposófica, o abdome está ligado à vitalidade e à força de vontade.
Com tantos fios conectando emoções e digestão, parece claro que, para o bem da barriga, é preciso cuidar da cabeça – e vice-versa. “Se você quiser aumentar a serotonina, a vontade de viver, o impulso de vida, tem de estimular essa força metabólica ligada à barriga”, diz Ghelmam. “O sedentarismo e a alimentação pobre em fibras vão na direção oposta disso, gerando doenças crônicas degenerativas, como diabetes, hipertensão e até câncer.”
Fortalecer a musculatura do abdome por meio de práticas voltadas diretamente para ela, como ioga, tai chi e pilates, também é uma forma de estimular as funções digestivas – e, por consequência, serenar as emoções. A monja Coen sugere um começo: “Respirar de forma consciente, profunda e suavemente, sentindo o abdome se expandindo e retraindo, é o caminho para nossa casa do tesouro, que jamais se exaure”.
Respirar fundo é básico, concorda Simone Caldeira. Para se sentir melhor e para não ter barriga proeminente. “O diafragma, responsável pela respiração, é um músculo intimamente ligado ao medo e ao estresse. Em estresse, ele ‘respira curto’, e isso causa dezenas de problemas”, explica. Na floresta, os animais respiram curto para não serem ouvidos pelos predadores. “A respiração faz um barulhinho que, na floresta, pode custar a vida”, diz. Pela mesma razão instintiva, homens e mulheres encurtam a respiração quando têm medo. “Em cidades como São Paulo, o predador está presente o tempo inteiro, na forma do chefe, do rival, da violência. Então a gente respira curto sem notar.” Com a tensão que isso gera, o diafragma é empurrado para baixo, na direção do chão, pressionando todos os órgãos e forçando o abdome para frente. “Os homens têm muito isso. E aí pode malhar quanto quiser que a barriguinha não sai.”
Expressões idiomáticas em várias línguas põem emoções como medo, raiva e vontade no devido lugar: a barriga
A ligação entre emoções e barriga pode ser um mistério que só agora a ciência ocidental começa a elucidar. Mas, na língua do dia a dia, sempre foi dada como certa. E não só na nossa. Entre as sensações “estomacais” universais que ganham expressão inclui-se aquele misto característico de ansiedade, excitação e medo. Em inglês e alemão, borboletas no estômago; em espanhol, bolhas de sabão na barriga; aqui, frio na barriga.
Usamos soco no estômago para falar tanto de agressão física quanto de qualquer outra que pegue no lugar certo. E não somos os únicos a confundir náusea física e desgosto ético: em inglês, francês, espanhol e alemão, algo revoltante dá vontade de vomitar.
Se em português é preciso ter estômago para aguentar uma situação aviltante, em inglês a expressão equivale a querer. A cultura anglosaxônica também põe coragem e intuição na barriga. Ter tripas é ter, digamos, colhões; e sentir nas tripas é ter uma revelação.
Nada se compara, porém, à barriga dos japoneses. O hara não é só abdome, intestino, estômago. É onde moram coragem, determinação, vontade, imaginação e entendimento, além do lugar onde as decisões são tomadas.
Assim, barriga grande é metáfora para mente aberta; barriga pequena, para pobreza de espírito; barriga dura equivale ao nosso “coração de pedra”; ler o estômago de alguém é entender a intenção alheia; ir pela barriga, agir com integridade; guardar na barriga, manter segredo.
Quando os japoneses ficam bravos, a barriga ferve. Já para os franceses, estar com o coração na barriga equivale a ter “sangue nos olhos”. A barriga dos franceses também é uma espécie de ponto fraco, em matéria de honra: pisar na barriga de alguém é passar por cima da pessoa. Idem para os alemães, que chamam fracasso de barrigada.
Fonte:http://revistatrip.uol.com.br/revista/219/reportagens/E-tudo-uma-coisa-so.html